Lusco-fusco
Sobre
Outubro de 2023
Nome dado ao estado de transição do dia para a noite e da noite para o dia, acredita-se que a origem do termo lusco-fusco acontece a partir da convergência de dois adjetivos latinos: luscus – caolho, vesgo – e fuscus – escuro, fosco. Há quem sustente, porém, que o substantivo composto venha de lux quæ fugit, luz que foge, também na língua latina. Numa ou noutra versão, há algo de inapreensível na intensidade crepuscular que atravessa esse breve fenômeno.
Tive a sorte de entrar em contato com a poética de Letícia Lopes, pautada na produção pictórica que elege o contraste como problemática central, em um momento de impetuosa ampliação. Até então, através da retratação de horizontes, cenas e criaturas noturnas, a artista amalgamou o flagrante da fotografia com flash a um conjunto de gestos que não se desvencilham da linguagem da pintura e do teor objetual de seus quadros. Em momentos de introspecção fraturada, figuras como lustres fantasmagóricos, lavados tanto por uma fosforescência que deles irradia ou por uma fluorescência a qual a partir deles reflete, aproximam-se de aparições ectoplasmáticas diante de fundos de profundo negrume.
Como permanecer imerso nas sedutoras águas do que é familiar e, ao mesmo tempo, caminhar para fora delas, sentindo nos ossos o frio que faz o corpo falhar, tremer? “O contraste é muito sedutor.”, afirma a artista. “Ele me ajuda a separar uma coisa da outra, que é a maior questão no meu trabalho. […] Mas tem alguma coisa nessa esfera do contraste que não está mais me apetecendo trabalhar de um jeito tão mono estratégico. Isso não significa abrir mão dessa estratégia”.
Assim como o lusco-fusco consiste no momento no qual o dia já acabou, mas que a noite ainda não começou, atualmente Letícia Lopes percorre uma zona cinzenta em que não pratica mais exclusivamente o contraste dual entre figura e fundo. Este ainda acontece a partir do assunto pintado e da maneira como pinta tal assunto, mas agora múltiplas figuras coexistem em um mesmo quadro. Como dividem esse território? Cortejam-se? Repelem-se? Devoram-se? Quais os modos pelos quais são tecidas as improváveis relações entre presas e predadores nas imagens? De que maneira tais situações, quiméricas por si sós, ganham mais evidência quando atentamos para o fato de que cada criatura foi pintada através de diferentes faturas pictóricas, ou seja, através de conjuntos de gestos heterogêneos?
Esta exposição é uma oportunidade para vislumbrar um momento ímpar, nebuloso e grávido de possibilidades que alvorecem na poética da artista. Uma vez que, para Salles (2008, p.53), “paradoxos e coerências convivem ao longo do processo criativo”, a prática de ateliê pode ser a encruzilhada de mais de uma investigação, ou o entendimento de que esta é uma só, com interesses abrangentes e polimorfos. O novo não surge senão através da transformação de elementos anteriores a ele. O que se transforma é produto, sempre inacabado, da contínua sobreposição de gestos de construção e destruição. Atentar para a crueza através da qual esses experimentos foram transpostos do ateliê para a galeria é uma chance de vislumbrarmos a lida penumbrosa, porém cotidiana, que raramente se dá a ver em uma mostra dessa natureza: o gesto criativo in statu nascendi, em franca contradição de si, um limbo cavernoso que não coalha a criação, mas que permite que esta seja praticada como parte da invenção de si, que é a prática em ateliê. Entre uma coisa e outra, o conjunto de trabalhos aqui reunidos é sintoma do estado de mudança que irrompe na obra de uma artista que, para se manter fiel ao problema que a emociona, assume a necessidade de se propor novos desafios. Talvez a encruzilhada em que atualmente Letícia Lopes se encontre não seja um momento anterior à escolha entre transmutar-se por completo ou permanecer na produção de imagens que satisfazem desejos cognoscíveis. Talvez a encruzilhada seja um estado a ser cultivado. Uma verdade-dúvida a ser perseguida. Um refúgio vertiginoso.
Guilherme Moraes