Julho de 2022
É tudo coisa da cabeça
“Boca diz o que quer” é frase repetida por aí . Empenho-me aqui na tarefa de dizer algo sobre pintura (submetido ao regime vigente, onde reza-se: “uma imagem vale mais que mil palavras”) não com a boca, no caso em apreço, que é só uma, mas com os dedos que somam dez. Do jeito que for, as palavras, escritas ou vocalizadas, adquirem forma no mesmo endereço difuso, um lugar que convencionou-se chamar de mente.
Devo aproximar-me das pinturas de Bruno Alheiros através das palavras. Há um trajeto e uma distância difíceis de percorrer nesta operação. As curvas e subidas de uma linguagem podem ser apenas evocadas por uma outra. Por vezes a palavra não chega lá, por isso insistimos na dança, na música, na pintura… E é do referido lugar nebuloso que surgem os dados que se entrelaçarão indissociavelmente às estruturas das linguagens: “pintura é coisa mental”, afirmou Leonardo no século XVI. Bruno Alheiros nos oferece uma curiosa dupla confirmação desta célebre frase, expondo através da icônica Alice, estados mentais que ele reivindica como sendo representativos dos seus próprios, e demonstrando na própria eleição do meio pictórico como arena de realização, a constatação de que a pintura acontece não somente na superfície tramada da tela. A pintura para Bruno parece se dar antes, nos feixes coloridos das projeções de sua vida interior; mas sobre este antes impõe-se sempre um durante que determina inescapavelmente a feitura dos objetos que pendem hoje das paredes desta galeria.
O filme de Walt Disney que inspirou Bruno, bem como a obra literária de Lewis Carroll, são delirantes ficções, como a própria pintura pode certamente ser. Bruno produz a sua ficção pictórica angustiada, repleta de autorreferências, hackeando a icônica personagem, fazendo da imagem dela um pouco a sua, através do faz-de-conta da projeção.
Ora, a pintura é cheia de fantasias, mas não estamos no País das Maravilhas. Bruno constrói sua pintura através de pinceladas que imprimem um frescor amanteigado, evocando, ao mesmo tempo, uma sensualidade táctil e insinuando descontinuidade e impermanência consonantes com a dimensão subjetiva das Alices representadas. Em nossas conversas, e observando seu trabalho, Bruno, parece-me, aproxima-se da ideia que Isabelle Graw chama de “Fantasia Vitalista”.
A autora aponta a tendência de vários pintores ao longo da história, de crerem piamente na ideia de que ao pintar, estariam verdadeiramente imprimindo sobre a tela algo de suas vidas. Isso é geralmente inverificável, e Graw argumenta que o que leva a essa crença fantasiosa, de que a pintura seria dotada de algo como uma vida e uma subjetividade próprias, doadas pelo seu autor, são os atributos materiais da pintura, além de seu incomparável prestígio crítico e comercial.
Não por acaso, o livro no qual Graw discorre sobre tais fantasias, se chama The love of painting. Essas projeções que confeririam um caráter de coisa viva à pintura, sustentariam-se em um grande amor nutrido historicamente por esse objeto, e que perdura.
Bruno define estas pinturas como uma série de autorretratos. Neles (ainda que apelando para um esgarçamento da amplitude elástica do gênero pictórico do autorretrato), ele se pinta plasmado na garota inglesa forçada a lidar com seus medos na terra do completo despropósito. Cega, em meio a insanidade do seu mundo, essa persona pintada se entorpece, procurando o alívio que não encontra na sobriedade de sua consciência infantil.
A ideia de Fantasia Vitalista faz-nos refletir sobre como se dá nossa relação com as obras de arte, tanto para os que pintam autorretratos, quanto para os espectadores que os consomem. Nossa relação com as obras guarda correspondências com as relações que tecemos com as pessoas? Estamos constantemente nos projetando sobre aqueles que amamos, assim como submetendo-os às nossas esmagadoras fantasias. Esse amor imenso, essas projeções fantasiosas, são coisas da nossa cabeça, que dão as caras no mundo físico a partir de nossas manifestações mais primais, e através das nossas mais sofisticadas produções, como aquelas matizadas pela linguagem. Na dança, na pintura ou nos crocantes cacos de porcelana quebrada, outrora xícaras, agora bolachas besuntadas em geleia, manteiga e mergulhadas no chá preto já frio, numa desvairada festa de desaniversário.
Heitor Dutra