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Turquesa Escarlate

Imagem de capa da exposição Turquesa Escarlate

Sobre

Maio de 2022

Falar de arte contemporânea é falar de um momento da história em que arte e vida se fundem de forma mais consistente. Ao propor expressões e técnicas disruptivas, rompendo padrões estéticos e permitindo uma potente possibilidade de reflexão e questionamento, o momento inaugurou não só a liberdade no fazer artístico, mas a capacidade de deslocar o espectador como peça fundamental desse processo. É quando a obra não se finda no entendimento do que está posto aos olhos. É quando vira o todo – o que motiva, o criar e para onde nos joga.

Dentro desse universo, encontra-se Bruno Vilela. O contato do artista com a tradição oriental é impulsionado pelo japonês Sunishi Yamada, professor de desenho com anatomia e pintura que chega ao Recife nos anos 1990, e torna-se, por quatro anos, o seu mestre. Mas o que esse encontro proporcionou a Bruno reverberaria pelos próximos 20 anos de sua trajetória artística e – principalmente – de vida. A prática da respiração sudarshan kriya, da meditação e do yoga, os mantras budistas, ou o singelo hábito de servir o tradicional chá indiano masala chai para as suas visitas, são exemplos dentre tantos que demarcam a tradição oriental presente em sua rotina. Um estilo de vida que segue fomentando o seu caminho criativo, sendo quase impossível desvencilhar a essência do artista da essência de sua arte.

A série Turquesa escarlate vem como uma continuidade de sua pesquisa sobre a tradição japonesa, com influência específica da arte ukiyo-e, gênero de xilogravura e pintura que floresceu no Japão entre os séculos XVII e XIX. Significa, em tradução livre, “retratos de um mundo flutuante”, advindo de uma expressão budista para se referir à transitoriedade de um mundo de dores em busca da libertação, ideia ampliada com a prosperidade do período Edo. Em meio à moda das porcelanas orientais, os europeus acabavam recebendo as gravuras ukiyo-e indiretamente, como papel de embrulho de pratos e vasos. O impactante contraste de cor e a vontade de fugir de uma pintura eurocêntrica clássica, preocupada com a representação, com o virtuosismo, levaram o estilo a influenciar importantes atores do movimento impressionista.

O prazer fisiológico do colorido da arte ukiyo-e serve de base pictórica para a construção da narrativa da Turquesa escarlate, que debruça-se na ideia do – como diria o criador da psicologia analítica, Jung – “absorvente natural de arquétipos avulsos”: o inconsciente. Se, em outros momentos, Vilela coloca o seu processo criativo em função de debater a lógica do mensageiro (Hermes, 2018) – aquele responsável por realizar a passagem do plano terreno para um etéreo, numa metáfora para a evolução humana através do conhecimento do divino – agora, o artista assume esse papel. Como num estado de sonho, por vezes de lisergia, as obras viram uma espécie de portal, o “entre”. Os arquétipos do barco e da água, presentes em grande parte das imagens, elaboram a relação da travessia do consciente para o inconsciente.

A série também sinaliza um momento de maior experimentação do artista, seja no uso da serigrafia com tinta a óleo, do efeito glitch (criado com uma escova de aço) para desconstruir a delicadeza de alguns elementos, na relação entre paletas contrastadas, ou até mesmo ao enveredar pela criação através de esculturas. Obras que são concebidas a partir do próprio processo de feitura, numa permissividade maior para tudo o que foge do controle. A luz se revela um elemento significativo na expografia, colaborando para a imersão do espectador, característica também construída na perspectiva em primeira pessoa observada em parte dos trabalhos.

Se falar de arte contemporânea é lançar luz sobre o potencial de sermos arremessados a um abismo de conclusões ininterruptas, Bruno Vilela, nesse contexto, é quem nos empurra. A cor “turquesa escarlate” não existe. Mas, aqui, passa a existir como metáfora à necessidade de dualismo. O azul turquesa, cor fria, representa a dimensão inconsciente, espiritual, transcendente. Já o vermelho escarlate ocupa o espectro mais quente das cores, é a dimensão consciente, carnal, imanente. São energias opostas, mas complementares. Turquesa escarlate, então, situa-se no “entre” das possibilidades. Não é esse o sentido da arte?!

Samanta Lira

Jazzz Agência Digital