Exposição

Pintura Vingada

Maio de 2022

O verbo vingar possui dois principais significados. Vingar é tirar desforra ou desagravar; é retaliar alguém ou algo por dano recebido. Mas é também ter bom êxito e lograr o desejado; é sobreviver a despeito de adversidades. Pintura vingada, exposição de Delson Uchôa, é desafronta do artista perante tudo que acua a arte e, ao mesmo tempo, evidência de algo que floresce e segue vivo. Reunindo quase três dezenas de trabalhos, é súmula de uma trajetória dedicada a criar, sobre o campo extenso da pintura, maneira única de enxergar e conhecer o mundo.

As pinturas de Delson Uchôa são clarões: primeiro cegam, e só depois iluminam. Em todas, há uma cor quente que domina o espaço pintado – quase sempre de grandes dimensões – e seu entorno próximo, provocando o estímulo alongado da retina. Embora quando observadas de longe é que mais clareiam o olhar, é somente vendo suas pinturas de perto – de uma distância em que a visão se avizinha das superfícies entintadas – que se percebe que suas luzes intensas são feitas, em sua maior parte, de delicados fios.

Suas pinturas são construções híbridas, que traduzem e aproximam, de modo sempre inconcluso, formações culturais diversas. O interesse antigo pela tradição construtiva da arte se confunde com o encanto pelas formas e cores que constituem seu lugar de origem e morada – Alagoas, Nordeste do Brasil. Sua produção é impura e de filiação incerta. É também de duração aberta, pois acumula, nas muitas matérias e gestos sobrepostos de que é feita, o tempo necessário à afirmação de coisa viva. O tempo necessário para que a pintura vingue.

São diversos os procedimentos de que se vale para criar. As pinturas mais antigas são feitas do depósito lento de tinta sobre lonas firmes – por vezes coladas sobre outras maiores para que o artista as expanda mais ainda. Inventa nelas campos de cor que parecem gerar ruído: um sussurro, um alvoroço. Ativa o interesse do outro como se olho fosse ouvido. Em outras, mais recentes, recorta e cola sobre lonas os tecidos sintéticos e coloridos que cobrem sobrinhas encontráveis por toda parte, incorporando, em seus trabalhos, o que chama de “cor-poliéster”. Tinta que já existe pronta e seca como pele que se arranca de bicho morto.

Há outras peles de pintura, contudo, que é Delson Uchôa quem cria. Há muitos anos que pinta o chão de barro cozido de sua casa-atelier e, uma vez que seque a tinta, descola dali extensas e finas camadas de pintura com que constrói mais trabalhos. Peles de tinta cultivadas no lugar onde cotidianamente pisa, usadas para inventar corpo novo para a pintura. Invento de corpo que envolve corte, enxerto, sutura. E que se torna, também, território e arquitetura feitos para o toque, para o encontro e para tomar abrigo. Trabalhos que exibem a “carnadura concreta” da pintura, tal como um dia escreveu o poeta João Cabral de Melo Neto a respeito do que significa a pedra em sua poesia.

A obra de Delson Uchôa rejeita, por sua mera presença no mundo, qualquer sugestão de esgotamento do ofício de quem pinta. É, ademais, matéria viva que medra o tempo inteiro, cultivada pelo artista e por quem mais se deixe afetar por sua quase tátil iridescência. É pintura vingada que se impõe a tudo e acolhe todos em igual medida.

Moacir dos Anjos
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Quando eu era criança, tinha uma caixa de lápis de cera composta por 12 cores. Eu adorava especialmente uma delas: a bonina. Não era rosa, não era vermelho, não era roxo, não era lilás, mas era tudo isso. O tempo seguiu e um dia percebi que aquela cor já não existia como possibilidade de escolha não só nos materiais escolares, mas nos panos, nos muros e nas conversas, permanecendo, agora como mistério, na minha memória. Pouco depois, me deparei com vidros de esmalte preenchidos com cores inventadas à base de poesia e pesquisas de mercado: amanhecer, leite de coco, pétala, jabuticaba, azul biônico.

Percebi que a cor não só não existe, mas se inventa e pode, ela mesma, ser gente. Cor é gente que inventa cor.

Aí conheci Delson. Ele tem pele de chão, de parede, de mato, de resina, de zigoto, de banana-d’água. É da cor branca da mesma maresia que leva à ruína suas panelas, grades, geladeiras e telefones. Vive perto do mar visitado diariamente por seus cães, o mar consumido por um plástico que forma ilhas imensas no meio do oceano, também plástico que compõe os corais e o sangue dos peixes. É um mar de baleias, adamastores e poliéster.

Um dia, de carro no asfalto, Delson viu que a luz do sol, quando bate nas sombrinhas estrangeiras que circulam por ali, faz China do Agreste. Ou melhor: faz nascer, de uma contemporânea soma entre mercado global, produtos de baixa durabilidade e necessidade de proteção, uma cor que não ilumina o plástico, mas um plástico que ilumina tudo. Viajou para Caruaru e voltou para o litoral norte de Alagoas com uma centena de sombrinhas batizadas em mandarim e xerém. Pegou o plástico cor de luz estourada e fez dele zigoto, performance, imagem, adamastor. Descobriu assim a anatomia da cor-poliéster. Ela pode conter o vermelho específico do pigmento da alizarina, ter tons de maresia e das mãos negras de André, de Anildo e Gedival, refletir os desastres e os renascimentos dos oceanos. Pode contar um povo, uma história, uma contradição e, principalmente, uma possibilidade de reinvenção. A cor-poliéster é a cor que ilumina um velho mundo novo. Um mundo que, ainda bem, para sempre vai assombrar Delson.

Fabiana Moraes
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Convite ao Diário de Bordo

Como tratar dos remendos num corpo à beira de sua existência?

Os instantes fragmentados iluminam o caminho processual de Delson Uchôa, um depoimento diário da pintura como ato cirúrgico sobre um corpo de tinta que proclama por sua existência. O fazer artístico percorre o couro por linhas incandescentes que têm a arquitetura da luz como guia, tecendo uma teia energética que o artista usa como apoio para se comunicar com seu estado, até então, imaterial.

Ao caminhar luminosamente sobre a superfície banhada pela luz tropical que invade seu ateliê, Delson investe num diálogo que “costura” arte, ciência e vida, na busca por uma expressão que aproxima seu corpo médico ao corpo da pintura, percorrendo fissuras que querem revelar sua carne. É a paisagem da terra querendo mostrar seu interior. Estado que talvez atravesse o artista em forma de miração.

Transplantes e enxertos passam a oxigenar o corpo, enquanto o barbante de algodão marca as suturas que avançam em chuleio contínuo ancorado – ponto cirúrgico de preferência de Delson –, para que assim a pintura possa vir a totalizar-se em sua condição carnal. Esse é o momento em que o trabalho acende a centelha, ao sair da predisposição do plano imaterial e vir partilhar do plano terrestre, onde o calor carnal (nos) atravessa e astutamente convida ao toque.

O vídeo ao lado reflete o testemunho autobiográfico de um desses processos imediatos de encarnação. Nesse caso, da obra Paisagem agrária com fendas tectônicas em quadrado (2020). O registro, feito em seu ateliê em Ipioca (Maceió/AL), é composto por uma série de vídeos capturados pelo celular do artista ao longo de 7 meses. Neles, Delson e seu assistente André discorrem sobre todas as camadas de um trabalho que aqui é apresentado em sua forma física, no último estado de modificação, ao sair de sua casa-ateliê.

Os rastros pontuados durante os instantes imediatos podem ser acompanhados em suas redes sociais através de imagens e pequenos textos, que se debruçam sobre os estados espiritual e físico dessa poesia própria de Delson em torno da condição carnal da pintura, e compõem o que ele convém chamar “Diário de Bordo”.

“Capturo imagens todo dia, moro no território da pintura, tenho muito apreço pelas imagens que a pintura me dá no processamento, e divido com amigos essa viagem. Justifica diário de bordo?”

Delson Uchôa em postagem feita no seu perfil do Instagram, em 5 de abril de 2022.

Steve Coimbra

R Samuel de Farias 245 Casa Forte Recife

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